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  • Foto do escritorcarolina bellocchio

A poeta e a posse

Posse presidencial norte-americana, há 18 anos, teve Maya Angelou


As imagens do Capitólio americano que vemos hoje, 20 de Janeiro de 2021, no dia da posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e da vice-presidente Kamala Harris, fazem-nos lembrar de outra posse, em que uma escritora fundamental foi a convidada de honra.


Maya Angelou, a escritora que inaugurou nosso Dia de Clube!, em Agosto de 2020, foi convidada pelo democrata Bill Clinton e leu seu fortíssimo poema No pulsar da manhã, que transcrevemos abaixo:


A Pedra, o Rio, a Árvore, Anfitriões de espécies já extintas

O mastodonte, o dinossauro, Que deixaram marcas várias De sua passagem por aqui No chão do nosso planeta, A urgência do seu crepúsculo Há muito perdida na poeira do tempo.


Mas hoje, a Pedra nos chama a nós, claramente, Vem, fique de pé sobre mim E mire seu destino distante, Mas não busque abrigo em minha sombra, Que eu não o protegerei dos dias que passam.


Você, criado inferior aos anjos, Que tanto se habituou à escuridão Que por tantos anos viveu Com a cara mergulhada na ignorância Sua boca vomitando palavras Carregadas de ameaças homicidas.


A Pedra nos chama hoje, Vem, fique de pé sobre mim, Mas não esconda a sua cara.


Por detrás dos muros do mundo, Um Rio canta um canto lindo. Ele diz, Vem, descanse ao meu lado.


Cada um de vocês, um país sitiado, Sofisticado e estranhamente orgulhoso Mas movendo-se continuamente sob ameaças contínuas. Suas intrigas fabricadas pela ganância Deixaram montes de sujeira em minhas margens, Ondas de detritos no meu leito. Ainda assim eu os chamo hoje

Para que a guerra seja esquecida Aqui ao largo do meu curso.


Vem, se aproxime em paz, E eu cantarei o canto Que o Criador me ensinou quando Eu, a Árvore e a Pedra éramos um. Antes que o cinismo fosse essa marca indelével em sua testa E quando você ainda sabia que nada sabia. O Rio cantava então, e ainda canta hoje.


Hoje, não há como não sentir a urgência De responder ao canto do Rio e à sabedoria da Pedra. Asiáticos, ticanos, judeus, Africanos, índios, Católicos, mussulmanos, franceses, gregos, Irlandeses, rabinos, padres, sheiques, Gays, heteros, pregadores, Privilegiados, favelados, professores. Eles ouvem. Todos eles ouvem as palavras da Árvore.


Eles escutam a primeira e última das Árvores Falando com a humanidade. Vem para mim, Aqui às margens do Rio. E permaneça aqui comigo, às margens deste Rio.


Cada um de vocês, descendente de um viajante, já pagou sua passagem. Você, que me deu meu primeiro nome, você, Tupi, Guarani, Yanomani, você Nação Xingu, que descansou sobre mim, Mas que então foi forçado a ganhar A vida em empregos criados Por outrem desesperados Pelo ganho, famintos pelo ouro.


Você, turco, árabe, sueco, Alemão, esquimó, escocês, Italiano, húngaro, polonês. Você, ashanti, yoruba, kru, Comprou, vendeu e roubou E acordou dentro de um pesadelo Sem nunca ter deixado de sonhar.

Maya Angelou, "No pulsar da manhã", declara: "Bom dia".

Vem, se acomode junto a mim. Eu sou a Árvore plantada junto ao Rio,


Que jamais sairá daqui. Eu, a Pedra, o Rio, a Árvore, Eu sou seu – sua passagem já foi paga. Erga então seu rosto para o céu E encare esta manhã que nasce para você. A História e toda a dor que Ela carrega Não pode ser desvivida, mas se encarada Com coragem, não precisa ser vivida de novo.


Erga seus olhos para o céu e repare Esse dia despontando só para você. Dê asas novamente Aos seus sonhos adormecidos.


Mulher, criança, homem, Agarre esse dia com as mãos E o molde na forma do seu Mais profundo desejo. Esculpa o dia À sua mais própria imagem e semelhança. Erga seu espírito.


Cada nova hora que chega promete Possibilidades infinitas para um novo começo. Não se deixe paralisar pelo medo Ou aprisionar eternamente Pelo ódio e a violência.


À sua frente o horizonte se expande Agora, abrindo espaço Para que você caminhe passos jamais antes ousados.


Aqui, no despontar deste novo dia Olhe com coragem Para o alto e para além de onde estamos, A Pedra, o Rio, a Árvore, o seu país. Não menos ao pobre do que ao rico, Não menos a você agora do que ao dinossauro então.


Aqui, no despontar deste novo dia, Você deve olhar confiante para o alto e para além E olhar também, fundo, nos olhos da sua irmã, No rosto do seu irmão, Do seu país, E dizer simplesmente Com uma esperança que já não cabe mais em si Aquela que seria a mais banal das frases: “Bom dia!”


(Tradução de Mauro Catopodis)


Com esse poema, que coloca em foco uma relação horizontal entre os homens, o reino animal, vegetal e mineral, ancorando a responsabilidade dos homens para a manutenção do presente e a construção do futuro, o dizer "Bom dia" sinaliza a instauração de uma civilidade necessária e possível.


Nesse ano de 2021, quando o apelo à civilidade e à responsabilidade se fazem deveras mais necessários, a posse também foi presenteada com uma poeta e sua voz. A jovem escritora negra Amanda Gorman, a mais nova a participar de uma cerimônia de posse, com seus 22 anos, performou "The hill we climb", "O monte que subimos" (tradução nossa). A imagem da natureza cantada por Maya também é evocada e nela a coletividade também se insere ("we"/"subimos)". A caminhada não será tão fácil, pois se trata de um monte, portanto exige fôlego, preparo, paciência, mas certamente caminhar é preciso para se chegar ao topo do monte.


Que o apontamento de Maya se junte ao de Amanda, e a partir da pedra, avistando o caminho-futuro a se percorrer, que sigamos "no despontar desse novo dia" e que olhemos nos olhos dos nossos semelhantes, afirmando o necessidade da linguagem e do diálogo, sem deixar de olharmos ao nosso entorno e dizendo "Bom dia".


No pulsar da manhã. Disponível em:

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